terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Uma mulher sob o sol

Helena estranhava o sol como se a noite tivesse partido mais cedo. Gostava da noite: a noite namorava-lhe as curvas, os olhos pintados, a silhueta recortada sob a luz do poste. A manhã não... A manhã parecia multiplicar-lhe as rugas, as contas, as lembranças e a solidão. A manhã, do outro lado da janela, não lhe trazia promessas ou planos: era como um grande vazio, um clarão sem sentido. O barulho dos carros, das crianças e supermercados perturbava seu silêncio conformado. As pessoas da manhã lhe eram alheias, não lhe conheciam, tampouco a queriam conhecer. Andavam de um lado para o outro como se zombassem dela... Ou pior, como se não a vissem. À noite, era diferente: as pessoas a viam, cobiçavam-na, invejavam-na, lançavam-lhe olhares furtivos ou de clara reprovação.  À noite, sua sombra crescia, tomava a calçada e ela sentia algum orgulho da vida que, horas antes, envergonhava-a. Poderia até ser que as pessoas da noite fossem as mesmas da manhã. Mas de noite, elas não queriam ser as mesmas... Helena caminhava, praguejando contra o sol como se ele tivesse roubado sua sombra na calçada. Sob a luz do sol, sentia-se nada... Olhava as pessoas que não a viam e pensava "ser de todo mundo é que nem ser de ninguém".


domingo, 29 de janeiro de 2012

Sândalo

“O sândalo perfuma o machado que o feriu...”
(Legião Urbana, Mil pedaços)

Incendiaste o meu rio com sândalo.
Eu escutei o teu riso, longe.
Tive um susto...
Ferido a vaidade, corri pros teus sinais.

Próximo do rio,
Vi-te refletida nas águas.
(As minhas águas.)
Vi que estavas nua.

Balançavas as mãos, mansa.
Vinham as primeiras ondas
Oscilantes do centro em minha direção.
Senti medo.

Fugi.
Corri o mais longe que podia.
Vi-me perdido.
Até que veio à narina o cheiro do sândalo.

Deixei-me guiar.
E fui, passo a passo, ao teu encontro.
Desvencilhando de minhas roupas
Pra te encontrar.

Trecho do livro "Quincas Borba"

Falar de Machado é um risco! Porque ele é um daqueles (raros) artistas que possuem uma obra tão completa que é praticamente impossível elogiá-la sem deixar qualidades únicas de fora. Escolhi um trecho da obra “Quincas Borba” para dividir com vocês que sempre me impressiona quando o leio. Mas é claro: recomendo a leitura do livro inteiro – uma experiência fantástica! Acontece que neste trecho, em especial, tudo me tira o fôlego – a narrativa, a descrição das sensações da personagem, a declaração que lhe fora feita... Para contextualizar: no trecho, a personagem Sofia relembra a declaração que outra personagem, Carlos Maria, fizera-lhe na noite anterior:

Posta à janela, dali a meia hora, Sofia contemplava as ondas que vinham morrer defronte, e, ao longe, as que se levan-tavam e desfaziam à entrada da barra. A imaginosa dama pergun-tava a si mesma se aquilo era a valsa das águas, e deixava-se ir por essa torrente abaixo, sem velas nem remos. Deu consigo olhando para a rua, ao pé do mar, como procurando os sinais do homem que ali estivera, na antevéspera, alta noite. . . Não juro, mas cuido que achou os sinais. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação
"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora."
Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo"A noite era clara..."




Assim como Sofia, passei tempos e tempos rememorando essas palavras... “A noite era clara...”

sábado, 28 de janeiro de 2012

Febre terçã

É tarde: minha cabeça dói.
Eu sinto a dor do mundo... (ou quase...)
Uma variedade de pensamentos e 
Sentimentos me vêem à cabeça.

Eu ligo a TV. Desligo-a depois.

Vou até a janela do quarto.
Olho pras coisas em volta:
Automóveis, pessoas, objetos.
Não me são conhecidos.

Estranho... – penso.

De arroubo surge uma lembrança boa
Que por um momento me faz rir,
E rir...
Até perder a graça.

Esqueço a dor do mundo.

Fecho a janela do quarto.
Jogo meus óculos à cama.
Sigo até a cozinha preparar chá mate.
“Mate, mate-me depois” – brinco.

...mas não tem graça...

Depois de pronto, bebo-o mansamente.
Vem-me o sono...
Queima-me os dedos a xícara quente.
Acalanta-me o juízo.

Esquenta-me os lábios.

"Hey you
Would you help me to carry the stone?
Open your heart (...)"

(Pink Floyd, Hey You)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Mais de mil ilhas

Somos mais de mil ilhas...
Mais de mil vozes sem uma canção,
mais de mil lâmpadas acesas por medo.

Erguemos mais de mil muros para cercar nossa solidão...
Somos mais de mil cabeças de gado sem direção
Com mais de mil motivos para debandar...

Somos mais de mil nós na garganta,
mais de mil pedaços de algum deus ou Deus,
mais de mil nomes sem saber quem são,
mais de mil léguas não nos bastariam
para que soubéssemos onde queremos chegar

Somos mais de mil barcos que o vento leva,
mais de mil levas para o céu todos os anos...

Somos mais de mil ilhas.

Prece

Não me faça maior,
não me faça melhor,
faça-me poeta!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

É necessário escrever um poema

É necessário escrever um poema...
É necessário escrever um poema...
(Repito comigo...)
É necessário escrever um poema...


E por falar nisso,
Cadê a divina providência
de que falavam os românticos?
Será que eu não fui tocado pelo dedo de... você sabe quem.


Ai!, meu Deus.


Que fique entre nós, meus amigos...
Se eu pudesse escrever um poema
como um cliente que pede algo ao garçom...
Eu diria... Sem dúvida, meus amigos, eu diria...


“Garçom, por favor... 
Garçom, por favor... 
Vê se me faz um favor...
Traga-me um poema de 22 versos, de amor e no capricho!


É que é urgente, garçom...
É que é urgente, garçom...
Pra ser sincero, garçom...
A verdade é que é urgentíssimo!”

Poema curto

Que a candura dela me tome a noite.
E leve meu sono, meu medo de ir.
Oh, Deus, que o sopro tenro da minha saudade 
alcance-lhe os lábios: encha-os de amor.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Quereres

Quero viver um pouco de reza,
Um pouco de festa,
Um pouco de mim...

Quero gritar... um pouco de louca!
Um pouco de sábia que ainda sabe ser feliz...

Quero sorrir um pouco de sangue,
Um pouco de gozo e um pouco de luz.

Quero dançar, leve bailarina,
Que os pés vão marcando o que a alma conduz...

Quero cantar, um tanto de Ofélia,
Um canto insensato de quem quer partir.

Quero escrever um mundo de cores, de vozes, de versos
E dormir... Feliz.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Que estranha sou eu

Posso ser o alegre da roda, o triste no canto no mesmo minuto
Posso ser a euforia do que foi... Ou a saudade que fica
A certeza da dor, o receio do amante
A ansiedade de esperar, o desespero de quem nada espera

Posso ser a menina que quer saber
O homem que quer esquecer
O velho que tenta lembrar
A moça que não cansa de recordar...
Cada segundo, cada gesto, cada detalhe importantíssimo!

Posso jurar que às vezes não passo de uma batida...
E às vezes sou um suspiro, uma palavra.
Posso ser quem eu mais odiava sem saber
Posso ser quem eu jamais quis ser...

Posso ser minha imagem refletida em teus olhos
Posso ser o meu próprio devaneio,
o corpo caído no poema...

Posso ser quem eu traço nessas linhas
Ou ser outra que escapa e não vejo...
Pode ser que eu não conheça essa que mora em meu peito.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

2 anos...

Hoje fazem dois anos do primeiro post deste blog. Um post do Ismael sobre nosso então Coração de Tinta.  E eu fico feliz que hoje possa comemorar mais um aniversário. Vivemos este blog ao longo de 2 anos. Ele acompanhou nossas risadas, tristezas, nossa euforia, a ardência dos primeiros meses, a falta de tempo do último ano... Ele acompanhou nosso amadurecimento... Nossas idas e vindas... Nossos sonhos.
Quando passo os olhos pelas páginas e páginas que foram sendo escritas desde 2010, é como se pudesse reviver momentos, emoções, desejos. Como se revivesse, de alguma forma, nossa história... “E nossa história não estará pelo avesso! Assim, sem final feliz... Teremos coisas bonitas para contar”
Sim, “tanta coisa bonita”... Então queria agradecer a cada um que fez parte desta história, que dividiu sentimentos conosco. Que sorriu junto, que refletiu ou que simplesmente apreciou. Vocês foram muito importantes! Foram um grande incentivo para continuar. Obrigada! E muito obrigada àqueles que deixaram aqui gravadas suas palavras. Tornaram cada texto, cada poema, cada conto ainda mais intenso.
E, enfim, obrigada ao Ismael pelo convite, pela oportunidade pela “ventura de ser o que sou. A minha aventura de ser o que sou”. Seja Coração de Tinta, Canções de Amor ou Exã, este espaço foi, é e há de seguir sendo uma parte encantadora de nosso caminho.