segunda-feira, 31 de março de 2014

"Sabe eu tive um filho..."

Enquanto visualizava as atualizações de amigos no Facebook, recebi uma mensagem direta de uma amiga de longa data. Nela havia um arquivo anexado, uma música em formato MP3.

Assim que vi o nome do arquivo, tive uma surpresa daquelas. Uma música que não ouvia há um bom tempo, As cartas que eu não mando, do Leoni. Não sou fã do cara, mas gosto das músicas. Quiçá, você também!
  
Agradeci a ela pelo gesto de carinho. Até o final deste texto, terei agradecido muito mais. Sem planos, encontros agendados ou cartas de taro, nos encontramos na esquina virtual da rede social. Melhor que isso, impossível!

Em meio a nossa conversa, baixei a música. Internet lenta. O que demoraria dois minutos demorou vinte. Teoria da relatividade? Prefiro não arriscar. Deixo para aqueles calejados no mantra.

   E9
Eu reformei a casa
      E  E9
Você nem soube disso
        A
Nem das outras coisas
        A4   A
Sabe eu tive um filho*


____________

* Trecho da música As cartas que eu não mando, do Leoni.

sábado, 22 de março de 2014

Pouso

Tarde da noite,
O corpo cansado,
Guardo o material de trabalho
E vou dormir.

Pois amanhã é um dia puxado
E é preciso acordar cedo.

Sossegue...
Nosso filho
Dorme enternecido na cama.

Como cresceu
Nosso garoto...

Vejo-te exausta em nossa cama.

Fora um dia cansativo, imagino,
Pois o bebê dá trabalho
E isso é bom.

Deito-me ao largo
E te olho paulatinamente.

Há tanta coisa a dizer,
Mas hoje não.

Hoje eu só quero
Pousar nos teus braços.

Amanhã também.

(Ismael Alves)

terça-feira, 11 de março de 2014

O açúcar


O branco açúcar que adoçará meu café 
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro 
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio 
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana 
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital 
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras, 
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.


(Ferreira Gullar)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Versos à boca da noite

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome...Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação da minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia do passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, e onde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

(Carlos Drummond de Andrade)