terça-feira, 5 de junho de 2012

A dama por detrás do rosto, o rosto por detrás da tela.


Para pintá-la precisava de certo distanciamento. Afastava-se do calor dos braços macios, do aroma de fruta doce... Só o que se prendia a ele era o olhar – firme, profundo. Costumava dizer para Luísa que ela tinha olhos de enxergar por inteiro. Seu olhar desvendava tudo: o ciúme, a melancolia, a saudade... Como era difícil manter os olhos nos olhos dela sem perder-se, sem esquecer da tela, da obra, de tudo! Engolia em seco o desejo. Ela não era sua. Não naquele quadro. Ela era do mundo. De todos que a mirassem, que admirassem seus cabelos cheios, que tentassem adivinhar quem era a dama por detrás daquele rosto mudo. Que tristeza a fazia quieta? Que amante a fazia nua? Seus mistérios de agora seriam mistérios de outros tempos. Seus segredos girariam sobre outras cabeças, sem resposta, sem cessar. Era dele a missão de fazê-la eterna. De gravar na tela aquele olhar que o invadia.
Pincelada por pincelada, o suor dele, o cansaço dela. Ele não exigia de Luísa que ficasse imóvel, só pedia para que sustentasse o olhar. Ela não se queixava, não questionava. Entendia a brasa nos olhos dele e sabia que era uma brasa diferente de quando eles se tocavam. Compreendia os movimentos agitados: mudanças de ângulo, o olhar querendo dividir-se entre ela na tela e ela na rede. Se ele partisse no meio naquele momento, ela entenderia... Sentia uma loucura parecida quando subia no palco. O êxtase, era o que queria do público. Doava-se inteira por isso. Doava-se sem medo por um segundo de êxtase da platéia.
Também era atriz quando posava para ele. Ele, seu diretor, preparava a luz, a posição de seu corpo, o cenário. Preparava até o seu silêncio: por vezes pintava-a de lábios entreabertos como se estivesse prestes a dizer... E nunca dissesse. Em outras, pintava-a de olhos perdidos, como se seu silêncio fosse o de uma recordação. Ele era minimalista em sua arte. E ela respeitava essa entrega. Queria ajudá-lo como pudesse. Não esperava ser nenhuma grande musa. Para ela, não havia nada de fantástico em seu rosto comum. Nada que não se achasse na mulher da padaria. Mas ele via algo. Algo em seu olhar.
Quando ele sentava-se ao lado dela, ela entendia que havia acabado. O pintor repousara, enfim. Ele não mostrava logo o resultado. Queria olhar um pouco mais antes de apresentar-lhe a versão definitiva. Por vezes, nunca a mostrava. “Uma peça ruim?”, Luísa perguntava. Ele aquiescia com um sorriso. Então, como se nunca houvesse ocorrido, a distância se desfazia em um enlace de corpos.

2 comentários:

Ismael Alves disse...

Muito, muito bom o texto. Gostei muito do final!!! Parabéns!

José Luis de Barros disse...

Nossa Beatrice, os seus últimos textos são excelentes. Adorei absolutamente tudo nesse último post, a começar pelo titulo. Lindo mesmo!

Beijo!