Para pintá-la
precisava de certo distanciamento. Afastava-se do calor dos braços macios, do aroma
de fruta doce... Só o que se prendia a ele era o olhar – firme, profundo. Costumava
dizer para Luísa que ela tinha olhos de enxergar por inteiro. Seu olhar desvendava
tudo: o ciúme, a melancolia, a saudade... Como era difícil manter os olhos nos
olhos dela sem perder-se, sem esquecer da tela, da obra, de tudo! Engolia em
seco o desejo. Ela não era sua. Não naquele quadro. Ela era do mundo. De todos que
a mirassem, que admirassem seus cabelos cheios, que tentassem adivinhar quem
era a dama por detrás daquele rosto mudo. Que tristeza a fazia quieta? Que
amante a fazia nua? Seus mistérios de agora seriam mistérios de outros tempos. Seus
segredos girariam sobre outras cabeças, sem resposta, sem cessar. Era dele a
missão de fazê-la eterna. De gravar na tela aquele olhar que o invadia.
Pincelada por
pincelada, o suor dele, o cansaço dela. Ele não exigia de Luísa que ficasse
imóvel, só pedia para que sustentasse o olhar. Ela não se queixava, não
questionava. Entendia a brasa nos olhos dele e sabia que era uma brasa
diferente de quando eles se tocavam. Compreendia os movimentos agitados:
mudanças de ângulo, o olhar querendo dividir-se entre ela na tela e ela na
rede. Se ele partisse no meio naquele momento, ela entenderia... Sentia uma
loucura parecida quando subia no palco. O êxtase, era o que queria do público.
Doava-se inteira por isso. Doava-se sem medo por um segundo de êxtase da
platéia.
Também era atriz
quando posava para ele. Ele, seu diretor, preparava a luz, a posição de seu
corpo, o cenário. Preparava até o seu silêncio: por vezes pintava-a de lábios
entreabertos como se estivesse prestes a dizer... E nunca dissesse. Em outras,
pintava-a de olhos perdidos, como se seu silêncio fosse o de uma recordação.
Ele era minimalista em sua arte. E ela respeitava essa entrega. Queria ajudá-lo
como pudesse. Não esperava ser nenhuma grande musa. Para ela, não havia nada de
fantástico em seu rosto comum. Nada que não se achasse na mulher da padaria.
Mas ele via algo. Algo em seu olhar.
Quando ele sentava-se
ao lado dela, ela entendia que havia acabado. O pintor repousara, enfim. Ele
não mostrava logo o resultado. Queria olhar um pouco mais antes de
apresentar-lhe a versão definitiva. Por vezes, nunca a mostrava. “Uma peça ruim?”,
Luísa perguntava. Ele aquiescia com um sorriso. Então, como se nunca houvesse
ocorrido, a distância se desfazia em um enlace de corpos.
2 comentários:
Muito, muito bom o texto. Gostei muito do final!!! Parabéns!
Nossa Beatrice, os seus últimos textos são excelentes. Adorei absolutamente tudo nesse último post, a começar pelo titulo. Lindo mesmo!
Beijo!
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