sábado, 1 de junho de 2013

Meninice

Filho, vou dizer-te agora
enquanto ainda é cedo,
enquanto ainda é garoto:
a meninice tem segredos
que a velhice sempre esquece.

Por isso, não te aborreça com a tua meninice,
que parece não passar...
Ela te guarda do amanhã
e amanhã sentirás falta dela,
do seu peso, sons e cores.

Não te aborreça com a tua meninice
porque ela é tua e é você, por hora...
O tempo da infância merece ser longo
porque passaremos todo o resto da vida
lembrando-o e o esquecendo.

domingo, 21 de abril de 2013

Dorme

Dorme, menino,
no colo da lua,
no ventre da noite,
pedaço do céu...

Dorme sereno
como a chuva serena,
como a estrela menina
a brilhar sobre nós...

Dorme agora
nos braços da avó,
nos olhos da mãe,
nos sonhos do pai...

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Seus gestos mudos

Por muito tempo permanecíamos assim, meu pai e eu, juntos em nossas ausências. Simplesmente nos acostumamos ao som de nossos gestos mudos: ao inexplicável ritual da troca de canal na televisão, sem que houvesse qualquer troca de palavras; ao bater de talheres no prato; ao bater do prato na mesa... Alheios àquela sala, àqueles instantes, ao nosso próprio alheamento... Até que, um dia, os gestos cessaram. E meu pai não trocou mais de canal, nem bateu seu prato na mesa... E hoje aquele silêncio me faz tanta falta! Porque o silêncio já não é o mesmo, nem a sala, nem eu mesmo, sem que soem seus gestos mudos.

sábado, 23 de março de 2013

De toda poesia que há em mim



É difícil precisar com toda a certeza
o que o meu coração sente.
Meu coração já não tem mais braça pra essa maré
e, com certeza, todo ato de fé é uma ação vã.

Da portinhola de minha casa
vejo um céu-grafite esmorecer em lágrimas.
Caem gotas na alameda de minha porta.
Mas não há ninguém, além de mim, são.

Aqui acolá,
alguém que não reconheço,
sôfrega ensopado.
E eu desato a rir de tal situação.

Fecho a portinhola.
Descalço as alparcatas.
Deito na cama.
Ligo a televisão.

E não há mais nada de interessante que eu me lembre de fazer depois.

___________________


(Imagem: http://www.google.com.br/imgres?um=1&hl=pt-BR&biw=1366&bih=600&tbm=isch&tbnid=nmQP5POYjxPsCM:&imgrefurl=http://pt.gdefon.com/download/foto_chuva_vidro_janela_gotas_cor_bokeh_humor_foto/317515/2560x1660&docid=V0kVabL4f2iOsM&imgurl=http://st.gdefon.ru/wallpapers_original/wallpapers/317515_foto_dozhd_steklo_okno_kapli_cveta_boke_nastroenie_2560x1660_(www.GdeFon.ru).jpg&w=2560&h=1660&ei=dkNOUbOXEOP00gG51YG4Cw&zoom=1&ved=1t:3588,r:60,s:0,i:267&iact=rc&dur=1580&page=4&tbnh=171&tbnw=261&start=50&ndsp=21&tx=96&ty=77)

quinta-feira, 21 de março de 2013

Invenção do mundo (ou daquilo que chamamos mundo)

À estranheza das coisas, que nos salta aos olhos na visão primeira;
à imprecisão das sensações, dos sentimentos;
à inquietude do ser consigo, com o outro e com o mundo;
ao silêncio do corpo, da alma e de Deus
respondeu a Linguagem
com seus nomes inventados,
tantos-quanto-é-o-sem-fim:
unidades de medida, diversidade de verbos,
numerais, nomes de cores, sabores,
 substantivos abstratos
dando concretude às coisas abstratas...
 Nomes que inventaram outros nomes
e outras coisas para se nomear.
E esses nomes inventaram frases
e essas frases se fizeram textos
que fundaram crenças, fatos e formas...
E assim, sob um mosaico de nomes,
enxergamos o mundo
ou aquilo que chamamos mundo.

quinta-feira, 14 de março de 2013

O meu afogar é calmo no mar revolto

O meu afogar é calmo no mar revolto
porque meu corpo já não contesta a fraqueza da vida,
porque minha vida já não resiste à certeza da morte...

Duro é bater-se contra as ondas,
sobraçando uma esperança
de deitar-se à terra firme e mansa.

Árduo é negar, todo tempo, o Tempo
que se abate sobre nossos dias
feito este mar em fúria.

Mas desistir foi-me um gesto de alívio,
que adormeceu meus sentidos
e anestesiou minhas dores.

Deixo que o mar arraste meu corpo
e dê vida a meus últimos movimentos,
sem qualquer intenção que os guie...

Enquanto meus ouvidos, quase surdos,
silenciam eternamente
as vozes desesperadas que vem da superfície...

As vozes desesperadas dos que insistem em esperar.


domingo, 3 de março de 2013

Maldades do tempo

Cada segundo te faz tão menino, brincando com o tempo!
E, ao mesmo tempo, cada segundo te faz tão mais e velho e cansado do tempo.
Ah! E agora, e esse passado que não passa, nem volta? Apenas dá voltas, persiste e assombra?
Maldades do tempo, que escreve um amanhã cheio de promessas sobre o teu ontem, esgotado de tanta esperança esquecida.

Prelúdio

Mas antes de morar em  mim, já estavas... Como o filme que se sabe o fim  ou o sorriso que se adivinha nos lábios de quem se quer. Já eras o início do amor que ainda não era. Eras a espera da história que ainda havíamos de contar.
Não descobri o caminho para tua vida, apenas fui trilhando os passos que teus olhos traçaram em mim.

Somos

Da manhã cheia à noite exausta,
do silêncio à canção,
do sereno à trovoada,
somos.

Do cinema à nossa casa,
da presença à solidão,
dos poemas às conversas
antes da noite chegar,
somos.

Da despedida ao reencontro,
do teclado ao violão,
dos meninos que já fomos
ao nosso menino que virá,
somos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Tez e tecido

Tez e tecido, confundidos,
fundidos no toque dos dedos,
no roçar dos lábios...

A fibra da roupa eriça a fibra da pele...
Quero saber onde termina a camisola de cetim
E começa o cetim da tua pele.

Quero passear pelas tuas curvas
que o tecido fino brinca de manter à mostra,
mas ainda ocultas...

Eu quero tua fome e tua sede,
teu peso, sem pressa,
teu grito, sem dor...

Vem assim, de lingerie,
vestida só de desejo,
poesia em forma de mulher...

Vem inventar mil formas de ser minha mulher.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Chá mate amargo e morno



“Mate amargo, noite adentro estrada, estranha”*

Bebo chá mate,
Amargo e morno...
Sinto-me um torto...
Vão.

E mesmo, pois, a bebericá-lo, enaltecê-lo, findá-lo,
Sinto o gosto do amargo e do tostado
Preso entre os lábios,
E me dou ao direito de lambê-los lentamente.

Semicerro os olhos...

A xícara vazia de bebida,
A insensatez do gesto,
Vivaldi e suas quatro estações
São um trago só.

Olho pras horas:
Consomem-me as horas,
Os derives
E os deveres

Tragando-me o que o trago me não fez.

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* Trecho da música "Ilex paraguarienses" da banda Engenheiros do Hawaii.

(Imagem: http://www.google.com.br/imgres?start=183&hl=en&tbo=d&rlz=1C1RNAN_enBR453BR453&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbnid=wJeoHEfVkH--IM:&imgrefurl=http://abstratoreal.wordpress.com/2012/10/01/adeus-silencioso/&docid=nwLSGJ3nk55CYM&imgurl=http://abstratoreal.files.wordpress.com/2012/10/xicara.jpg&w=460&h=288&ei=_BAVUaPFCKPO0QHd44HIBA&zoom=1&ved=1t:3588,r:96,s:100,i:292&iact=rc&dur=432&sig=110806949657666573050&page=9&tbnh=175&tbnw=284&ndsp=23&tx=152&ty=36)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O teu olhar quieto



Vamos nos dar as mãos
E nos olhar nos olhos.
Sei que o teu olhar castanho,
Substantivo,
E quieto
Confundir-se-á
Com os meus.
Ambos vãos.
A se ater e atear,
A se atar
Num lindo e deslumbrante
Delirante
Debater de asas.

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(Imagem: http://www.google.com.br/imgres?hl=en&sa=X&tbo=d&rlz=1C1RNAN_enBR453BR453&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbnid=06Y05-cYhpGHyM:&imgrefurl=http://gimulek.blogspot.com/2010/11/o-segredo-de-um-olhar.html&docid=_fLfpOx3U-WcxM&imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiItKugNI38HneIU8YnhWUUFGOn5u-bXuD7xO6zsK5vMgBB8UeAluFRH7vD3PGpe316jqBCAW7kjhs1ZumKgDRyMECRU3cNVm3XixnWp1OzuH3HUiCQUhwTucIMlhHZNj-ZrYYcKa7P2jc/s1600/Segredo%25252Bde%25252Bum%25252Bolhar.jpg&w=1128&h=760&ei=8tURUZr0EYmy9gT4voGoBA&zoom=1&ved=1t:3588,r:49,s:0,i:238&iact=rc&dur=807&sig=110806949657666573050&page=3&tbnh=173&tbnw=274&start=40&ndsp=22&tx=113&ty=67)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

À espera

Pulsam, em meu corpo, dois corações, duas alegrias, duas vidas...
Em meu ventre cresce um ventre pequenino, de menino,
e, em meu peito, a esperança de vê-lo fazer-se homem.

Cada dia é um dia a mais para senti-lo
e um dia a menos para o instante em que o terei nos braços,
para o dia em que descobrirei, um a um, seus traços...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Corda bamba

"A esperança dança na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha pode se machucar"
(João Bosco/Aldir Blanc)

Nem o equilíbrio, nem a queda
Nem tocar o céu, nem ceder ao chão
Nem o silêncio, tampouco o berro
Nenhum aplauso, nenhuma vaia...
Apenas um movimento incerto entre a partida e a estada.
 
Algo no meio, sem ser obstáculo
Algo se acaba, sem ser o fim
É um passo à frente, sem ter prosseguido,
um passo em falso entre o teto e o asfalto.

Um sonho oscila entre meu gesto e o teu,
tenta ser firme na corda bamba...
Cada gesto é um extremo da corda,
uma ponta do mundo,
um ponto a alcançar.
                                                                                                                                                                                                                                                                                         
O sonho persiste na corda bamba
Só um fio frágil sob seus pés
o separa da iminência do chão,
da segura conclusão de que não voa.
 
Mas o sonho segue em frente,
sem perdas e sem ganhos,
sem certeza, sem espanto.
Avança, intrépido sonho!
Avança enquanto é tempo de avançar!

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Consolo

Para tudo nessa vida há consolo, minha mãe já dizia. A viúva se consola da perda do marido, mais dia ou menos dia. O bêbado se consola da bebedeira do outro dia, nem que seja no bojo de outra bebida. O desiludido se consola da ilusão primeira, cedendo à outra ilusão, ainda mais faceira. O trabalhador exausto se consola da vida amarga em um sonho doce e a dona de casa sofrida liga a TV e se sente menos desgraçada ao ver tantas desgraças que o jornal anuncia todo dia. Consolo... Ele está em qualquer lugar quando se está disposto a encontrá-lo. Há quem diga que o céu é o consolo dos vivos. Há quem ache que a morte é o consolo da vida, como se, sob a terra, aguardasse-nos o consolo de toda dor que sofremos sobre ela. A fé consola os que acreditam. O prazer, os que o desfrutam. A música, os que param para senti-la. Eu, por exemplo, consolo-me com palavras: escrevo-as, leio-as, aventuro-me em pretéritos imperfeitos e logo, logo, reconcilio-me com o mundo e comigo.

No fim, a fome.

Encontrei um homem em seu fim... Seu olhar já se desencontrava do mundo e de mim.  Postei-me a seu lado enquanto a morte lhe aguardava, maternal, e ele me confidenciou: “Faltaram”. Faltaram? Mas quem? Quem faltara a este pobre diabo, justo na hora final? A esposa, os filhos, amigos? “Quem faltou, meu senhor?”. E ele me respondeu: “Faltaram feitos, minha filha... Faltaram fatos, festas, fotografias... Faltei... Faltei comigo mesmo. Faltou firmeza, força, folia! Faltou fome... Faltou fome de viver”. E assim se foi com sua fome, com sua sede de ter sido mais de si.